Durante alguns anos eu pensava que as pequenas diferenças
existentes nas passagens comuns aos quatro evangelhos diminuíam sua
credibilidade. Com o decorrer da minha análise, compreendi que essas diferenças
também eram importantes para atestar a existência de Cristo. Compreendi que as
suas biografias não procuravam ser cópias umas das outras. Eram resultado da
investigação de diferentes autores em diferentes épocas sobre alguém que possuía
uma história real.
Todos os evangelhos relatam Pedro negando Cristo. Porém, quando
Pedro o negou pela terceira vez, somente Lucas em seu evangelho comenta que
Jesus, naquele momento, voltou-se para Pedro e o olhou fixamente (Lucas 22:61).
As diferenças de relatos nos quatro evangelhos, ao contrário do que muitos podem
pensar, não depõem contra a história de Cristo, mas sustentam a sua
credibilidade. Vejamos esta tese.
Lucas era médico e, como tal, aprendeu a investigar os fatos
detalhadamente. Tinha um “olho clínico” acurado, devia detectar fatos que
ninguém observava ou valorizava. Quando, muitos anos após a morte de Cristo,
interrogou Pedro e colheu os detalhes daquela cena, captou um gesto de Jesus que
passou despercebido aos outros autores dos evangelhos. Percebeu que Cristo,
mesmo sendo espancado e injuriado, esqueceu-se da sua dor e se preocupou com
Pedro. Este comentou com Lucas que, no instante em que ele o negava pela
terceira vez, Jesus virou-se para ele e o fitou
profundamente.
O olhar de Cristo esconde nas entrelinhas complexos fenômenos
intelectuais e uma profunda delicadeza emocional. Mesmo no extremo da usa dor
ele se preocupava com a angústia dos outros, sendo capaz de romper o instinto de
preservação da vida e acolher e encorajar as pessoas, ainda que fosse com o
olhar.
Quem é capaz de se preocupar com a dor dos outros no ápice da
própria dor? Se muitas vezes queremos que o mundo gravite em torno de nossas
necessidades quando estamos emocionalmente tranquilos, imagine quando estamos
sofrendo, ameaçados, desesperados.
Pedro talvez só tenha tido a compreensão plena da dimensão desse
olhar trinta anos após a morte de Cristo, ou seja, depois que Lucas, com seu
olho clínico, investigou a história do próprio Pedro, vislumbrou aquela cena e a
descreveu no ano 60 d.C., data provável em que ele escreveu o seu
evangelho.
O evangelho de Lucas é um documento histórico bem pesquisado e
detalhado. Ele consultou testemunhas oculares, selecionou as informações e as
organizou de maneira adequada. Como médico, tinha interesse incomum por retratar
assuntos da medicina (Lucas 1:1-2). Deu muita atenção aos acontecimentos
referentes ao nascimento de Cristo. Investigou Isabel e Maria, e foi o único que
descreveu seus cânticos, bem como os pensamentos íntimos de Maria. Lucas
demonstrou um interesse particular pela história das pessoas, por isso retratou
Zaqueu, o bom samaritano, o ex-leproso agradecido, o publicano arrependido e nos
conta a parábola do filho pródigo. Lucas era um investigador minucioso que
captou particularidades de Cristo. Percebeu que até seu olhar tinha grande
significado intelectual.
Como disse, os demais autores dos evangelhos não vislumbraram esse
olhar de Cristo, por isso não o registraram. Essas diferenças em suas biografias
atestam que elas eram fruto de um processo de investigação realizado por
diferentes autores que enfocaram diversos aspectos históricos. Os evangelhos são
quatro biografias “incompletas”, produzidas, em tempos diferentes, por pessoas
que foram cativadas pela história de Jesus
Cristo.
Essas biografias têm coerência, sofisticação intelectual,
pensamentos ousados, idéias complexas. São sintéticas, econômicas, não primam
pela ostentação nem pelo elogio particular.
Cristo, em alguns momentos, revelava claramente seus pensamentos,
mas em seguida se ocultava nas entrelinhas das suas reações e das suas
parábolas, o que o tornava difícil de ser compreendido. Ele se revelava, o que o
tornava difícil de ser compreendido. Ele se revelava e se ocultava
continuamente. Por que tinha tal comportamento? Sua história nos mostra que não
era somente porque não procurava o brilho social, mas por que tinha um grande
propósito: queria produzir uma revolução no interior do ser humano, uma
revolução transformadora, difícil de ser analisada. Queria produzir uma mudança
nas entranhas do espírito e da mente humana capaz de gerar tolerância,
humildade, justiça, solidariedade, contemplação do belo, cooperação mútua,
consideração pela angústia do outro.
Seu comportamento, revelando-se e ocultando-se continuamente,
também objetivava provocar a inteligência das pessoas com as quais convivia.
Como veremos, ele desejava romper a ditadura do preconceito e o cárcere
intelectual dessas pessoas. Ninguém foi tão longe em querer implodir os
alicerces da rigidez intelectual e procurar transformar a
humanidade.
(Fonte: Análise da Inteligência de Cristo –
Augusto Cury).
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