Como
Cristo lidava com os papéis da memória? Usava a memória humana como um
depósito de informações? Tinha uma postura lúcida e coerente diante da história
dos seus discípulos? Cristo usava os papéis da memória de maneira diferente de
muitas escolas clássicas. Possuía uma sabedoria impressionante. Não dava uma
infinidade de informações para seus íntimos nem mesmo regras de conduta, como
muitos pensam. Usava a memória como um suporte para fazer deles uma refinada
casta de pensadores. Aqui, comentarei apenas a linha principal do pensamento de
Jesus diante dos papéis da memória.
As escolas
são fundamentais numa sociedade, mas elas têm enfileirado os alunos durante
séculos nas salas de aula, acreditando que a memória tem um atributo que na
realidade não possui: o de ser um sistema de arquivo de informação que faz de
nós retransmissores delas. O senso comum acredita que tudo o que se armazena na
memória será lembrado de maneira pura. Todavia, ao contrário do que muitos
educadores e outros profissionais pensam, não existe lembrança pura das
alegrias, das angústias, dos fracassos e dos sucessos que foram registrados na
memória existencial (ME). Só são recordadas de maneira mais pura as informações
de uso contínuo, como endereços, números telefônicos e fórmulas que foram
registradas repetidas vezes na memória de uso contínuo (MUC).
O passado não
é lembrado, mas reconstruído. As recordações são sempre reconstruções do
passado, nunca plenamente fiéis, apresentando às vezes micro ou macro
diferenças.
A memória não
é um sistema de arquivo lógico, uma enciclopédia de informações, nem a
inteligência humana funciona como retransmissora dessas informações. A memória
funciona como um canteiro de dados para que nos tornemos construtores de
pensamentos. Cristo tinha consciência disso, pois usava a memória como trampolim
para expandir a arte de pensar. Estava sempre estimulando os seus discípulos a
se interiorizarem e a se repensarem.
Por que a
memória humana não funciona como a memória dos computadores? Por que não
recordamos o passado exatamente como ele foi? Aqui esconde-se um segredo da
intelig~encia. Não recordamos o passado com exatidão não apenas pelas
dificuldades de registro cerebral, mas também porque um dos mais importantes
papéis da memória não é transformar o ser humano num repetidor de informações do
passado, mas num engenheiro de ideias, um construtor de novos pensamentos. Esse
segredo da mente humana precisa ser incorporado pelas teorias
educacionais.
Nunca se
resgata a realidade das experiências do passado, mesmo quando se está em
tratamento psicoterápico. O filme do presente nunca é igual ao do passado. esse
fenômeno, além de nos estimular a ser engenheiros de ideias, contribui para
desobstruir a inteligência em situações dramáticas. Por exemplo, uma mãe que
perde um filho poderia paralisar sua inteligência, pois recordaria continuamente
ao longo da vida a mesma experiência de dor vivida no velório dele. Porém, como
a recordação do presente é sempre distinta daquela do passado, ainda que
minimamente, a mãe vai pouco a pouco aliviando inconscientemente a dor da perda,
apesar de a saudade nunca mais ser resolvida. Com isso, ela volta a ter prazer
de viver.
Sem tais
mecanismos intelectuais, expostos sinteticamente, não apenas as experiências de
dor e fracasso poderiam paralisar nossas inteligências, mas também as de alegria
e sucesso poderiam nos manter gravitando em torno delas.
Cristo estava
continuamente conduzindo seus discípulos a pensar antes de reagir, a abrir as
janelas de suas mentes mesmo diante do medo, dos erros, dos fracassos e das
dificuldades. Estimulava os papéis da memória e o processo de construção de
pensamentos.
Volto a
repetir, a leitura multifocal da memória e a reconstrução continua do passado
nos levam a ser engenheiros criativos de novas ideias, e não pedreiros das
mesmas obras. Mas não contribuímos para esse processo, como fazia o mestre de
Nazaré; pelo contrário, nós o atrapalhamos, pois, em vez de exigirmos de nós a
flexibilidade e a criatividade, preferimos ter ótima memória e ser repetidores
de informações, o que encarcera a inteligência.
Esse erro
educacional se arrasta por séculos e vai se intensificar cada vez mais à medida
que o ser humano quiser ter uma memória e uma capacidade de resposta semelhante
às dos computadores. Os computadores são escravos de programas lógicos. Eles não
pensam, não têm consciência de si mesmos e, principalmente, não duvidam nem se
emocionam.
Muitos alunos
não se adaptam ao ensino tradicional e são considerados incompetentes ou
deficientes porque o modelo educacional nem sempre estimula adequadamente os
papéis da memória. As próprias provas escolares podem representar, às vezes, uma
tentativa de reprodução inadequada de informações. Precisamos compreender que a
especialidade da inteligência humana é expandir a arte de pensar, criar,
libertar o pensamento, e não decorar e repetir informações.
Veremos que,
por conhecer bem os papéis da memória, o mestre da escola da existência ensinava
muito dizendo pouco. Desejava que as pessoas não fossem repetidoras de regras de
comportamento, capazes apenas de julgar os outros, mas sem saberem se
interiorizar e enfrentar seis próprios erros, como os fariseus, conforme é
relatado nos capítulos 6 e 23 de Mateus: “Tira a trave do teu olho, então verás
claramente para tirar o cisco do olho do teu irmão.” Somos ótimos para julgar e
criticar os outros. Todavia, ele não admitia que seus discípulos vivessem uma
maquiagem social. Primeiro tinham que apontar o dedo para si mesmos, para depois
julgar e ajudar os outros.
Estudando as
entrelinhas de suas ideias, verificamos que Cristo sabia que os pensamentos não
se registram na mesma intensidade, que há determinada experiências que obtêm um
registro privilegiado no inconsciente da memória. Por isso, toda vez que queria
ensinar algo complexo ou estimular uma função importante da inteligência – tal
como aprender a se doar, a pensar antes de reagir, a reciclar a competição
predatória –, Jesus usava gestos surpreendentes que chocavam das pessoas e
marcavam para sempre a memória delas.
O Mestre dos
Mestres entendia as limitações humanas, sabia como era difícil administrar as
próprias emoções, principalmente nos focos de tensão. Sabia que facilmente
perdemos a paciência quando estamos estressados, que nos irritamos por pequenas
coisas e ferimos as pessoas que mais amamos. Para ele, o mal é o que sai de
dentro de nós e não o que está fora. Cumpre ao ser humano atuar primeiro no seu
mundo intelectual para depois aprender a ser um bom líder no mundo
social.
Cristo não
admitia que as tensões, a ira, a intolerância, o julgamento preconcebido
envolvessem seus discípulos. Estimulava seus íntimos a serem fortes numa esfera
que costumamos ser fracos: fortes em administrar a impaciência, rápidos em
reconhecer as limitações, seguros em reconhecer os fracassos, maduros em tratar
com as dificuldades do relacionamento social (Mateus 5:1 a
7:29).
A preocupação
dos mestre tem fundamento. Existe um fenômeno inconsciente que chamamos de
fenômeno RAM (Registro automático da memória) que grava imediatamente todas as
experiências na memória. Nos computadores é necessário dar um comando para
“salvar” as informações, Porém, na memória humana, a mente não nos dá essa
liberdade. Cada pensamento e emoção são registrados automática e
espontaneamente, e por isso as experiências do passado irrigam o nosso
presente.
O fenômeno
RAM registra todas as nossas experiências de vida, tanto nossos sucessos como
nossos fracassos, tanto nossas reações inteligentes como as imaturas.
entretanto, há diferenças no processo de registro que influenciarão o processo
de leitura da memória. Registramos de maneira mais privilegiada as experiências
que têm mais conteúdo emocional, seja ele prazeroso ou angustiante. Por isso
temos mais facilidade de recordar as experiências mais marcantes de nossas
vidas, tanto as que nos causaram alegrias como aquelas que nos frustraram.
Estimular adequadamente o fenômeno RAM é fundamental para o desenvolvimento da
personalidade, inclusive para o sucesso do tratamento de paciente depressivos,
fóbicos e autistas.
Cristo não
queria que as turbulências emocionais fossem continuamente registradas na
memória, engessando a personalidade. Queria que seus discípulos fossem livres
(Lucas 4:18; João 8:32). Livres num território em que todo ser humano é
facilmente prisioneiro, seja um psiquiatra ou um paciente: no território da
emoção. O mestre da escola da existência, quase vinte séculos antes de Goleman,
* já discursava apontando a energia emocional como uma das importantes variáveis
que influenciam o desenvolvimento da inteligência. Como veremos, a maneira como
ele lidava om as intempéries emocionais, superava as dores da existência,
desenvolvia a criatividade e abria as janelas da mente nas situações
estressantes deixaria os adeptos da tese da intelig~encia emocional pasmos,
tamanha a sua maturidade.
Se não formos
rápidos e inteligentes para lidar com nossas ansiedades, intolerâncias,
impaciências, fobias, nós as retroalimentaremos em nossas memórias. Assim, nos
tornaremos o nosso maior inimigo, reféns de nossas emoções. Por isso muitos
vivem o paradoxo da cultura e da miséria emocional. Possuem diversos títulos
acadêmicos, são cultos, mas, ao mesmo tempo, infelizes, ansiosos e
hipersensíveis, não sabem absorver suas contrariedades, frustações e as críticas
que recebem. Essas pessoas deveriam se reciclar e investir em qualidade de
vida.
Não está sob
o controle consciente das pessoas o registro das informações na memória, assim
como também não está o ato de apaga-las. Mas é possível reescrevê-las. Já pensou
se fosse possível deletar os arquivos registrados na memória? Quando
estivéssemos decepcionados, frustrados com determinadas pessoas, teríamos a
oportunidade de matá-las dentro de nós. Isto produziria um suicídio impensável
da inteligência, um suicídio da história. Muitos de nós já tentamos, sem
sucesso, eliminar alguém de nossa memória.
Cristo
indicou ao longo do relacionamento que teve com seus discípulos que tinha
consciência de que a memória não pode ser deletada. Veremos que não queria
destruir a personalidade das pessoas que conviviam com ele. Pelo contrário,
desejava transformá-las essencialmente, amadurecê-las. Não desejava anular a
história delas, mas desejava que reescrevessem sua história com liberdade e
consciência, que não tivesse medo de repensar seus dogmas e de revisar seus
conflitos diante da vida.
Como pode
alguém que nasceu há tantos séculos, sem qualquer privilégio cultural ou social,
demonstrar um conhecimento tão profundo da inteligência humana? O mestre de
Nazaré era um maestro da vida. Ele usava seus momentos de sil~encio, suas
parábolas, suas reações para estimular seus incultos discípulos a se tornarem um
grupo de pensadores capazes de tocar juntos a mais bela sinfonia da vida. Sem
dúvida, era um mestre intrigante e instigante. Estudar a inteligência dele é
muito mais complexo do que estudar a de Freud, de Jung, de Platão ou de qualquer
outro pensador.
(Fonte: Análise da Inteligência de Cristo –
Augusto Cury).
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